Segunda, 20 Junho 2022 10:00

Soberania para acabar com a carestia

Alexandre Ferraz Economista e doutor em Ciência Política e técnico do Dieese Alexandre Ferraz Economista e doutor em Ciência Política e técnico do Dieese

 Publicado: 15 Junho, 2022 - 00h00

O Brasil sofre para criar bons empregos, empregos formais atrelados a garantia de direitos sociais básicos, apesar a promessa feita na época da reforma Trabalhista. Ao invés disso o que vemos é a proliferação de trabalhadores precários por detrás do discurso do empreendedorismo.

Como disse outro dia Luiz Inácio Lula da Silva soberania é comida no prato, emprego e renda, e cuidado com o meio ambiente. A agenda privatista do governo que vende seus ativos estratégicos para o setor privado e gasta os recursos obtidos com a venda do patrimônio de forma irresponsável não responde as necessidades e a soberania do país. O Estado enfraquecido pela agenda do sucateamento e desmantelamento se torna cada vez mais um coadjuvante do mercado, incapaz de liderar a nação e colocá-la novamente no trilho do desenvolvimento, com a repartição dos seus frutos para toda sociedade. Não há quem não perceba o empobrecimento do país ao andar nas ruas das cidades e no campo. Os dados do índice do desenvolvimento humano (IDH), mostram uma queda de 9 posições desde 2014, deixando o brasil na 84 posição, apesar da pequena melhora de 1,2% no desempenho. O problema é que outros países estão melhorando a um ritmo bem maior, o México promoveu uma melhora de 2,4% no IDH, passando para posição 74.

Os dados não escondem a realidade. Esta semana a Rede PENSSAN divulgou o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. Os números são alarmantes, e revelam que “o povo brasileiro vem empobrecendo progressivamente e enfrentando as consequências da precarização da vida, sem o suporte adequado e efetivo de ações do Estado” (p. 35). Os domicílios brasileiros que enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave passaram de 20,5% do total para 30,7%, representando cerca de 65,6 milhões de pessoas.

A pesquisa realizada a partir de entrevistas domiciliares, seguindo uma metodologia similar a do IBGE e compatível com os dados da PNADC do instituto do governo mostram que em 15,5% dos domicílios os moradores passam por insegurança alimentar grave, trocando em miúdos, passam fome. Enquanto 15,2% dos domicílios estão sujeitos a insegurança alimentar moderada, não há escassez de alimento a ponto de as pessoas passarem fome, mas restrição no seu consumo. São casas onde os moradores comem menos do que deviam e consomem muitas vezes um alimento “ultraprocessado”, mais barato e de pior qualidade que os alimentos naturais e os orgânicos. Esta piora na qualidade da alimentação é sentida também pelas famílias em domicílios com insegurança alimentar leve, presente em 28% dos lares brasileiros.

Entre os pouco mais de um ano transcorridos entre a pesquisa realizada em dezembro de 2020 e a atual, realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número de moradores com situação de insegurança alimentar grave aumentou em aproximadamente 14 milhões de pessoas, ao mesmo tempo em que cerca de 8 milhões a mais de pessoas passaram a sofrer insegurança alimentar moderada. A situação é pior no meio rural, onde 18,6% dos lares sofrem com a insegurança alimentar grave, e sensivelmente pior no Norte e Nordeste, onde 25,7% e 21% dos domicílios sofrem com a fome, respectivamente, totalizando cerca de 17 milhões de pessoas.

Os números escancaram o sofrimento das famílias mais pobres, que respondem por praticamente 13% da população, com rendimento inferior a R$ 261 reais por mês por pessoa. Segundo Marcelo Neri, da FGV, mesmo “com a adoção do novo auxílio em escala reduzida com duração limitada a partir de abril de 2021” cerca de 27,7 milhões de pessoas se encontravam na pobreza, um número maior do que o observado antes da pandemia do Covid. Os dados do IBGE sobre rendimento mostram que, em 2021, o rendimento dos 50% mais pobres ficou no pior patamar dos últimos 9 anos e a desigualdade voltou a subir.

 As condições do mercado de trabalho e da inflação têm contribuído para agravar o cenário, juntamente com o desmonte de políticas sociais importantes de proteção à população mais vulnerável. A introdução do novo inquérito sobre a segurança alimentar não poderia ser mais clara em seu primeiro parágrafo: “Nesse cenário de desmonte das políticas públicas, direta ou indiretamente voltadas à proteção e à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), deve-se destacar, em 2021, a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Bolsa Família (PBF), substituídos pelos programas Alimenta Brasil e Auxílio Brasil, respectivamente, reconhecidos por analistas sobre o tema como frágeis em suas concepções e objetivos, além de limitados na abrangência populacional. Estima-se que apenas metade dos 100 milhões de pessoas antes atendidas pelo PBF e pelo Auxílio Emergencial permaneceu com acesso ao Auxílio Brasil. Ademais, sobressai, neste período da pandemia, a má gestão do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).”[1]

O Brasil sofre para criar bons empregos, empregos formais atrelados a garantia de direitos sociais básicos, apesar a promessa feita na época da reforma trabalhista. Ao invés disso o que vemos é a proliferação de trabalhadores precários, que por detrás do discurso do empreendedorismo. As grandes empresas de serviço e aplicativo aumentando seu lucro através da precarização da mão de obra, na proporção em que “economizam” ao não pagarem os direitos trabalhistas para esses “colaboradores”. Mas hoje sabemos que ao invés de uma relação autônoma, esses trabalhadores são no fundo empregados sem direitos dessas empresas, sujeitos a exclusão (demissão) arbitrária, sem direitos a férias, licença maternidade, auxílio-doença, férias remuneradas etc.

A taxa de desemprego de abril caiu para 10,5%, se colocando num patamar similar ao início de 2016. O índice esconde o aumento do trabalho sem carteira assinada e a heterogeneidade regional, ainda assim são 11,4 milhões de desocupados. Os dados refletem a média do país, mas no Nordeste a taxa de desemprego chega a 14,9%, enquanto no Sul fica em 6,5%, evidenciando as desigualdades regionais. O trabalho sem carteira assinada responde por 41% do pessoal ocupado. Cerca de 12,5 milhões de pessoas trabalham sem carteira assinada no setor privado, e 4,3 milhões trabalham em casa de família. O Brasil ainda conta com outros 20 milhões de ocupados informais que se dizem empresários e trabalhadores por conta própria sem CNPJ.

 O aperto monetário do banco central para combater a inflação tende a frear qualquer retomada do emprego, e de quebra agravar a fome e a pobreza. A inflação vem corroendo o poder de compra dos Brasileiros, que têm enfrentado dificuldade para colocar a comida na mesa, ao mesmo tempo em que os preços disparam, consumindo o orçamento familiar com itens básicos como energia elétrica, gás de cozinha, transporte e alimento. No último levantamento feito pelo Dieese, em maio, o valor da cesta básica correspondia a 69,4% do salário-mínimo. Após comprar a cesta básica sobram apenas R$ 371 no bolso do trabalhador, em 2015 sobrariam R$ 558, o que mostra o tamanho da perda de poder de compra dos brasileiros.

Mas a inflação não é igual para todos e sabemos que vem prejudicando principalmente os mais pobres, como tem mostrado o IPEA, outro órgão de pesquisa do governo. A inflação para classe mais baixa foi 20% maior do que para classe mais alta. O IPCA ficou em 11,73% no acumulado em 12 meses, em maio, os preços do grupo “alimentos e bebidas” subiu 13,5%, castigando os mais pobres, que consumem uma parcela maior de sua renda com itens básicos. O feijão “carioquinha” subiu 19% em pode faltar no mercado, a farinha de trigo, quase toda importada, subiu 27,8%. Os recordes ficaram por conta do gás de cozinha e da gasolina que subiram quase 30% e do óleo diesel, que subiu 52,3%. O que deve se agravar com o aumento do consumo no segundo semestre, para desaguar a safra agrícola. Ainda corremos o risco de enfrentar o desabastecimento do produto. A estratégia de vender refinarias da Petrobrás, e represar investimentos nos projetos em andamento não ajudou o país a manter sua soberania energética, nem alimentar. O Brasil não está sem rumo. O Brasil está no rumo errado.

 

[1] II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]: -- São Paulo, SP : Fundação Friedrich Ebert : Rede PENSSAN, 2022.

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